Partamos de uma hipótese: e se em vez de pintora, Cristina Lamas fosse cartógrafa? E se os belíssimos papéis que nos mostra não fossem amplidão, mas minuciosos mapas, mas relatórios absolutamente fiáveis no seu rigor? Que teríamos a aprender com isso?
1. O primeiro viajante somos nós próprios. A viagem pressupõe uma reflexividade, uma experimentação sobre si mesmo, um saber de si. Mesmo se o que vemos são linhas, digressões e trilhos, mesmo se nos parece estar perante a representação objetiva da paisagem diurna ou do deslumbramento noturno: por detrás de cada fragmento solto do mundo encontra-se o nosso corpo.
2. Quando pensamos em partir para nos perdermos, estamos apenas a acelerar grandemente as possibilidades do (re)encontro. Ao contrário do que propõe o célebre verso de Elizabeth Bishop ("The art of losing isn't hard to master"), a arte de perder é um mistério raro. As trajetórias do viajante atiram-no para fora de si ou recolhem-no ao seu interior mais desconhecido? Há extravios? Há caminhos sem saída?
3. Atravessar corredores, caminhar de um ponto a outro, de uma cor a outra é, por vezes, passar do golpe à ferida (ou o seu inverso), da angústia à exaltação (ou o seu inverso), da timidez ao entusiasmo (ou o seu inverso), mas é sempre deslocar-se do recolhimento à entrega. O acesso e o final estão afinal unidos por uma via única.
4. É incrível, mas as nossas trajetórias coincidem secretamente com as nossas procuras.
5. Seja como for, a alma é trabalhada pela sua viagem. Primeiro, a consciência de nós próprios confunde-se com a nossa língua, a nossa memória histórica, os hábitos que transportámos. Depois aprendemos a desembarcar no nosso interior como quem aporta a um lugar desconhecido. No trânsito de uma geografia quantificável para uma geografia poética colhemos isto: o que compreendemos da vida é aquilo que está por compreender.
José Tolentino Mendonça